Há encontros t?o sublimes que podem nos fazer abrir m?o até da própria vida.
Uivo ficou estático na encosta do morro, os sentidos em alerta.
N?o demorou e pressentiu algo à sua direita.
Sorrateiro se esgueirou naquela dire??o, tendo o cuidado de se manter oculto.
Como uma sombra passou pelas árvores.
Tempos depois parou, sondando, esperando, e uma suspeita foi emergindo em sua mente: se ele podia pressenti-lo, também podia ser pressentido. Era bem provável que estivesse sento manipulado, sendo enviado de um morro para outro, de uma montanha para outra.
Esvaziou a mente e se deixou seguir, voltar atrás no caminho, até o lugar em que julgara que o sentira, logo após ter visto Adanu e Allenda, perto da aldeia.
Devagar subiu numa árvore, de onde ficou sondando com a mente vazia.
Finalmente o encontrou.
Sabia que ele estava espreitando, procurando alguém de poder. Devagar foi se acercando, tendo o cuidado de se manter oculto.
- Um Juguena – cismou preocupado, procurando identificar o alvo do dem?nio.
Um frio percorreu todo seu corpo. Os juguenas eram dem?nios raros e extremamente perigosos. N?o se tinha notícia de que alguém, algum dia, conseguira matar um deles. Somente um, há muitos e muitos anos, mas por um grande grupo de juruparináh, e mesmo assim, amargando pesadíssimas perdas.
Uivo sentiu um tranco, um suor gelado tomando seu corpo quando a viu. Allenda estava agora sozinha, ca?ando na floresta.
Depressa voltou a aten??o para o dem?nio, e viu que ele apenas avaliava, imóvel e silencioso.
E ent?o ele sumiu.
Mais que depressa Uivo se virou para onde estava Allenda.
A dor que sentiu amea?ou denunciá-lo. Allenda estava deitada e o dem?nio estava sobre ela, parecendo sugar sua energia.
Com grande rapidez se fechou, a mente fixa num ponto bem à frente, indiferente. Apenas um ponto no mato, sem qualquer pensamento sobre ele.
Ent?o, com um impulso terrível, já totalmente poderado, num estampido se lan?ou contra aquele lugar.
O ser gritou e girou, quebrando o encanto que mantinha Allenda presa, se elevando à frente da flor-do-mato.
Uivo viu de relance a suave neblina que saia da boca e narinas de Allenda cessar, e ele viu quando a cabe?a dela pendeu de encontro ao ch?o.
Uivo olhou fundo na criatura que se erguia, as vestes de neblina cinza crescendo perigosamente.
Uivo rosnou baixo, os pelos eri?ados, as garras desembainhadas cravadas no ch?o.
A criatura parou, o olhar confuso em Uivo, que mantinha a mente vazia e livre.
Por um momento a criatura pareceu indecisa. Mas ent?o ela atacou. Suas vestes se alongaram velozes como flechas, procurando o cora??o de Uivo, que se esquivou, agachando-se no último segundo. Num arranque poderoso Uivo se jogou para a direita, e após para a esquerda, escapando de um novo ataque. Saltou no ar, girando suave, mantendo a criatura sob sua aten??o.
Quando desceu caiu em pé, à frente da criatura, suas garras cravadas nos lados da criatura, que sorria.
Uivo sentiu quando foi atingido. A dor parecia querer destruí-lo. E havia aquela voz amiga e gentil que lhe dizia que n?o havia o que temer. Esvaziou a mente, sentindo apenas as garras na carne estranha e macia como uma pluma. For?ou-as mais para dentro, a urgência o tomando. A criatura se aproximava perigosamente do seu cora??o, e sabia que n?o teria mais muito tempo. Como se fosse uma explos?o liberou toda sua mente e gritou que n?o se entregaria ao dem?nio. A criatura tremeu, toda sua forma ondulando como se fosse a lamina de um lago perturbada pelo vento. Com um movimento de revolta, sentindo seu cora??o pulsar dolorosamente mais forte, come?ou a afastar as patas, rasgando a criatura. Mas era apenas penumbra que se esgar?ava no ar, como se tivesse sido revolvido, e que logo se recompunha.
Mas, ao menos, sentiu o impacto duro do ch?o.
Com dificuldade se levantou e se preparou para combater o dem?nio. Com toda a frieza que podia encarou o dem?nio, que apenas o observava.
Se preparava para novo confronto quando o dem?nio surgiu bem à sua frente, um fiapo como uma longa farpa cravada em seu peito.
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Com uma lentid?o estudada, como se para incutir mais medo, foi puxando-o para si, os olhos capturando os de Uivo.
As coisas ficaram meio estranhas, confusas.
Uivo apenas se lembrava do ódio descontrolado que o tomou, do terrível medo de que, assim que o dem?nio desse cabo dele, ele pudesse atacar Allenda. Ent?o frustra??o em ódio, urgência em desespero, e o mundo se enovelou e se aquietou num terrível cinza, onde só ele parecia comandar.
E, de dentro daquela neblina espessa ele atingiu o dem?nio com todo esse ódio acumulado, com toda essa dor que reservava para se manter vivo.
O dem?nio sentiu e gritou de espanto, se afastando, deixando-o livre.
- Deixe-a ir. Eu tenho toda a dor de que precisa... – gemeu, temendo desfalecer e perder a oportunidade de deixar Allenda segura.
- N?o pode me oferecer isso, quando agora tenho o seu medo pela vida dela.
E nem bem dissera isso ele voltou a atacar novamente, farpas entrando pelos lados, raspando nas costelas. A dor foi imensa, e Uivo percebeu de quanto mal aquela criatura se vestia. Nenhum órg?o importante fora atingido, percebeu, mas apenas nervos e músculos, gerando uma dor insuportável. Era isso o que o dem?nio queria, dor e desespero.
Sabendo que era apenas dor com o que lidava, Uivo se esfor?ou em se erguer, os olhos presos nos da criatura.
Com um movimento rápido cortou as sombras que tanta dor lhe afligiam e passou as garras pelo pesco?o da criatura, rasgando toda a neblina.
Como se fosse de longa distancia julgou ouvir risos.
Ent?o se lembrou de muitos e muitos anos atrás, ainda muito pequeno, quando sentiu um ódio daquele tamanho. Os que o perseguiam, naqueles dias, juraram aos outros que ele se tornara um dem?nio e os atacara, tamanho o ódio e o descontrole que o tomara.
Ent?o, possuído de desespero, transformou toda a dor que sentia em ódio. Sentindo-se mais recomposto atacou com fúria, como se fosse uma tempestade enlouquecida.
Pensava se n?o poderia ter alguma esperan?a de escapar daquele dem?nio quando foi duramente atingido, uma farpa de sombra perfurando suas carnes e seus ossos. E essa sombra que o atingira parecia crescer dentro de seu corpo, expandindo-se dentro de seus ossos.
Seus sentidos se embaralharam, e temeu perder a consciência.
O juguena aproximou a cara de sombras e cheirou o ar em volta de Uivo. Ent?o abriu uma bocarra vermelha e riu, a risada ecoando maldosa para além das montanhas.
- Ora, ora, o que é isso que temos aqui? – saboreou com nítido prazer, a voz parecendo-se com uma cascata de pedregulhos numa caverna. – Eu deveria impedir todo o sofrimento que vai ter? – sorriu tomado de prazer. - N?o, acho que n?o devo. Morrer, para você, seria uma liberta??o, se conseguir sobreviver... – sentenciou, rodando lentamente a farpa no peito de Uivo, que gemeu fracamente.
Ent?o, como se tudo tivesse perdido a gra?a, simplesmente desapareceu.
Sem o apoio da farpa do dem?nio Uivo despencou de joelhos no ch?o, o corpo doendo, sem for?as, a cabe?a pendendo para o ch?o, os ombros derrubados.
Seu corpo parecia destruído, desfeito. For?ou o tronco para cima, tentando se levantar. Caiu de joelhos novamente, as for?as falhando perigosamente. Com dificuldade se arrastou em dire??o a Allenda, que gemia em dores. Com grande esfor?o se sentou, encostando as costas num tronco, puxando a cabe?a de Allenda para o seu colo.
- Uivo, é você? – a ouviu gemer.
- Sim, sou eu! Descanse, descanse. Agora está tudo bem. Ele já n?o está mais aqui...
Mas, para seu desespero, pressentiu algum movimento à frente e sua dor aumentou, temendo que a criatura, ou uma outra, estivesse avan?ando contra eles. Usando suas últimas reservas afastou Allenda e se levantou, as garras sem for?as para desembainhar totalmente encaminhando grossas gotas vermelhas para o ch?o, os bra?os pesados ao longo do corpo arriado.
- Minha vida pela dela – gemeu se dirigindo para os vultos ao longe que os olhos turvos n?o conseguiam mais focalizar. Todo seu ser estava tomado de desespero, o mal-estar atingindo-o duramente, a mente girando, o mundo come?ando a escurecer.
- Ele está muito mal... Eu cuido dele. Veja como ela está... – pensou ouvir de muito longe.
- Que loucura... Eu vi um juguena guinchar perto daqui. Só pode ser ele. Por Tup?, um juguena por aqui...
Uivo se deixou cair, aliviado, ao reconhecer a voz de Adanu e Tenebe que pareciam crescer na sua dire??o. Sem for?as deixou a dor crescer livre dentro de sua alma. Já n?o tinha mais for?as para mantê-la distante.
Sua respira??o ficou difícil, sua cabe?a parecia que ia explodir, e a escurid?o avan?ou com grande velocidade.
Se esfor?ou em ficar desperto, procurando por qualquer sinal de Allenda. Um alívio estranho o percorreu, e tentou dizer algo, em resposta a algo que julgara ter ouvido alguém com a voz de Allenda ter dito. Mas n?o havia for?as, n?o havia mais qualquer coisa, somente sua mente esfiapando e se desfazendo.
No fim da adrenalina seu corpo cedeu e a dor se foi, como lentamente se ia tudo o que era.
Havia uma paz imensa ali, reconheceu. N?o havia mais dor, ou qualquer necessidade. Apenas paz, uma paz imensa.
Ent?o um movimento em suas m?os, sensa??es de cabelos que ro?avam pelas m?os e bra?os, e lábios doces em seu ouvido. Se entregar seria fácil, se deixar ir seria prazeroso, se viu pensando.
Mas ent?o uma voz vinda de muito longe sussurrava seu nome de dentro da escurid?o que avan?ava. Um brilho suave, como se fosse um sol de prata, foi devassando aquele mundo.
E era aquela voz que n?o permitia que se fosse, sempre que pensava em desistir. Vagarosamente foi tomando consciência novamente. A dor renasceu poderosa, e a voz cresceu e encheu seu mundo, e soube que n?o se permitiria partir.
Lentamente viu uma escurid?o avan?ar e um calor feito de sons de fogo que crepitava suave lhe fizeram promessas de que tudo ficaria bem, e tempos depois uma luz foi se fortalecendo, refor?ando o mundo que voltava a sentir.
Com rapidez tudo foi se tornando suportável e o mundo foi fazendo mais sentido.
Ele era homem agora, se reconheceu, deitado com as costas apoiadas num tronco, os bra?os pendentes, o peito nu tomado por inúmeras marcas escuras que, lentamente, se desfaziam.
E ali, bem à sua frente, na sombra de uma frondosa paineira rosa, Allenda velava, sob os olhos pesarosos de Tenebe, de Adanu e de dois poderosos queixadas. E havia aquele ronronar, aquele encantamento que o fortalecia e o impedia de ir embora. Ela estava ali, bem ao lado. Ela n?o dizia nada, nem precisava. Uma lágrima brotou de seu rosto que via em meio aos cabelos de milho. Como resposta lhe mandou um fraco sorriso, vindo do cora??o que quase fora destruído.
- Pelo Trov?o – suspirou Adanu. – Um juguena, aqui. Como ele os deixou vivos? Eles n?o s?o conhecidos por serem piedosos.
- N?o sei, pai – Allenda gemeu, aconchegando mais fortemente Uivo a si. – Ele sussurrou algo para o Uivo, e se foi. Acho que algo tocou o cora??o dele...
- Você chegou a ouvir o que ele disse? – Tenebe perguntou, os olhos preocupados postos sobre Uivo.
- N?o, nada. Mas, quem sabe esse tenha algum cora??o? – Allenda gemeu.
- Quem sabe, quem sabe – cismou Adanu observando com preocupa??o a trilha de mato enegrecido por onde o dem?nio se fora. – Só que eles n?o têm cora??o, Allenda.